Em debate

Eram para ser apenas casos de Saúde Mental

Disparos efetuados contra pacientes psiquiátricos provocam discussão

Sete de março de 2017. Um homem é morto pela Brigada Militar (BM) com um tiro na cabeça em frente à casa da família, na rua Luciano Gallet, Zona Norte da cidade. Três de fevereiro de 2018. Um jovem de 24 anos também é baleado na cabeça por um agente da Guarda Municipal (GM) na rua Anchieta, Centro. O que os casos têm em comum, além dos disparos letais? Em ambas as situações, tratavam-se de pacientes com distúrbios psiquiátricos. Pessoas que precisavam de atendimento de urgência para controlar suas crises e, ao invés disso, encontraram reações desproporcionais de quem atendeu as ocorrências.

Há quase um ano, Cláudio Adão Lima de Souza, então com 41 anos, entrou em surto por falta de medicamentos e saiu para a rua com um espeto na mão. Chamado pela família para contê-lo, o Samu pediu suporte da Brigada e os policiais chegaram antes ao local. Diante do que consideraram uma ameaça, disparam contra Souza. A ação não só gerou um inquérito interno na BM, como também acendeu um sinal de alerta sobre os cuidados prestados neste tipo de ocorrência. Tanto que alguns meses depois, em setembro, o caso foi um dos principais assuntos durante o evento Samu Mental, em São Lourenço do Sul, que debateu o atendimento pré-hospitalar em saúde mental.

Secretária da Saúde, Ana Costa afirma que o incidente foi uma exceção, mas que levou o município a uma reavaliação dos procedimentos em cenários que envolvam pessoas em surto. Mesmo assim, há pouco mais de duas semanas algo parecido se repetiu e Pierre Bonow foi atingido. Na última sexta-feira (16), o jovem, que estava internado na UTI da Santa Casa de Misericórdia, morreu. “Não saberia dizer se houve um erro. Infelizmente há estes casos sem sucesso, que ninguém gostaria. Mas hoje cada vez mais os surtos são comuns e atendidos com sucesso”, diz.

Enquanto o município tenta chegar a uma conclusão sobre o que pode ter dado errado, por parte das famílias o silêncio ainda permanece. Pouco tempo depois da morte do filho, Arani, mãe de Cláudio Souza, colocou a casa para alugar. “Ela entrou em depressão depois da morte do filho e se mudou para Piratini. Nunca mais apareceu”, conta uma vizinha. O Diário Popular tentou contato por telefone, sem sucesso. Da mesma forma com os familiares de Pierre, que não responderam aos recados da reportagem.

Protocolo
Bastante criticadas pelas reações que tiveram, Brigada e Guarda Municipal lidam de formas diferentes com a morte dos pacientes. Para o subcomandante do 4º Batalhão de Polícia Militar, Marcio Facin, o apoio ao Samu em situações de risco à integridade dos agentes de saúde é praxe e ocorrerá sempre que solicitado. Contudo, admite que a ocorrência deixou lições.

“Nós temos sempre marcado encontro com o Samu próximo ao local para chegarmos juntos à ocorrência e prestar segurança do início ao fim. Todas as ocorrências com fatos graves são objeto de estudos de caso, reavaliações e aprimoramentos no nosso treinamento. Aquela não foi diferente. Sempre que se instrui acerca daquele tipo de ocorrência, procuramos alternativas na direção de evitar aquele ocorrido”, comenta.

Por outro lado, o novo comandante da GM, Sandro Carvalho, defende a decisão tomada por um dos agentes, de atirar contra Pierre. Logo após sua posse, dia 15, disse em entrevista que o disparo foi a “última alternativa” e que “dentro do possível, foi uma atitude correta”. Apesar disso, destacou que pretende oferecer aos integrantes da Guarda cursos de qualificação para agir em casos deste tipo.

Ana Costa confirma a intenção de promover cursos de treinamento e simulação de ocorrências psiquiátricas, já que, segundo orientação da regulação estadual do Samu, a presença de profissionais da segurança pública faz parte do padrão nestes casos. “Na urgência e emergência de acidentes e outras ocorrências, trabalhamos com simulações. Agora, queremos levar isso para estes casos, envolvendo a Guarda, a Brigada”, aponta.

“Não adianta ter pressa”
Coordenador de Saúde Mental da Secretaria de Saúde e da Santa Casa de Misericórdia de São Lourenço do Sul, o psiquiatra Flávio Resmini foi um dos idealizadores do evento Samu Mental e defende o atendimento mais humanizado a pacientes em surto. Segundo ele, um dos maiores problemas em casos como estes é o despreparo de quem cuida da ocorrência.

“Apesar de muitas vezes ser um clima tenso, é preciso respeitar o tempo necessário para que a situação se acalme e se resolva. Esse é o segredo da coisa. Precisamos de equipes que saibam lidar com isso. É tenso, mas exige tranquilidade e calma, sem pressa para que se chegue e resolva logo. É por isso que muitas vezes um chamado acaba extrapolando para algo mais conturbado, até violento”, argumenta. Segundo ele, intervenções policiais devem ser cogitadas somente em casos excepcionais. “Se o paciente estiver armado e represente risco, talvez se pense na necessidade”, completa.

O modelo a ser seguido
Enquanto em Pelotas e todo o Estado o atendimento de urgência pré-hospitalar segue um protocolo que envolve equipe padrão do Samu (médico ou técnico, enfermeiro e condutor da ambulância) e apoio policial, em Brasília a realidade é bem diferente. Criado em 2013, o Núcleo de Saúde Mental do Samu (Nusam) transformou a forma de lidar com estas situações. Ao criar uma equipe especializada nestes casos, com psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e assistentes sociais dedicados a atender 24 horas por dia, o serviço inverteu a lógica.

“É feita uma triagem por telefone e, depois disso, necessitando ação no local, essa equipe vai até lá e tenta resolver. Quando é necessário, o paciente é encaminhado a um tratamento e seguimos acompanhando por telefone, entrando em contato para ver se está recebendo o atendimento adequado”, explica o psiquiatra Gustavo Carvalho de Oliveira, integrante da equipe desde a implantação do projeto.

Desde que o Nusam foi implantado, a capacidade de atendimentos psiquiátricos triplicou e em 80% dos chamados os pacientes não precisam sequer ser transportados a um hospital ou medicados. Antes disso, a proporção era inversa. Conforme o psiquiatra, uma boa conversa feita por profissionais preparados resolve a maioria dos casos, evitando o uso de ambulâncias em deslocamentos desnecessários, “Não ocupamos leitos hospitalares e não envolvemos outros órgãos”.

Sobre o uso de força policial como suporte ao Samu diante de pessoas com problemas de saúde mental, Oliveira é enfático. “Aqui isso nunca ocorreu. O máximo é, em situação de risco extremo, solicitar apoio dos Bombeiros, que não usam armas. Foi um pouco chocante saber do que aconteceu aí em Pelotas.”

COBRANÇAS

Na terça-feira (20), às 10h, a Câmara de Vereadores irá discutir as formas de contenção de pacientes psiquiátricos em Pelotas. Estão convidados para a reunião os secretários de Saúde, Ana Costa, e de Segurança Pública, Aldo Bruno Ferreira, e os coordenadores do Samu.

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